terça-feira, 14 de julho de 2015

O REINO DO LAÇO, NA TERRA DA LASSIDÃO Fernando Luiz Borges Jr

Era uma vez um reino muito conhecido, por ali existirem especialistas em laços. Por laços, entendam-se os de toda sorte: laço, propriamente dito, arapuca, visgueira, manzuá, e qualquer outro tipo de armadilha de que vocês possam lembrar. A forma de captura também variava, de acordo com quem preparava o laço. Se a armadilha era montada por quem fabricava produtos, as formas mais comuns eram: especificar um objeto e colocar outro, de qualidade inferior; reduzir o conteúdo, mantendo o tamanho da embalagem, etc.; enfim, técnicas que, à luz do código penal, poderiam ser enquadradas no art. 171 – crime de estelionato – do Código Penal, mas que, por conta do estado de lassidão em que se encontravam comandados e comandantes, iam sendo adotadas de modo generalizado, na base do farinha pouca, meu pirão primeiro! A outra forma de captura e, – creio - mais perigosa que a primeira, era a praticada pelos senhores do reino. Também conhecida como armadilha do queijo – o do tipo reino redondo -, ela consistia em gerar e manter em torno de si uma superestrutura formada por comandados especializados - a quem era prometida uma vida confortável, por conta do retorno financeiro proporcional ao grau de complexidade dos trabalhos desenvolvidos. Naturalmente, fazia parte das promessas a proteção contra os sobressaltos do mundo extra muros (também conhecida como estabilitatis). Tudo devidamente registrado em tabelas e avalizado pelo selo sagrado da assembleia real (papiro supremo que trazia em seu bojo o DNA do reino. Era um documento superior ao rei, em tese, e todos - inclusive o rei - a ele eram submetidos). Como a condução desse reino era muito complexa, não se podia ter comandados quaisquer. Eles tinham de ser os melhores dos melhores; resultado de competições nacionais com representantes de diversas tribos. Muitos desses representantes abandonavam todas as demais atividades sociais de suas vidas por meses e anos, até, preparando-se para essas provas. Mesmo sabendo que concorreriam com dezenas – próximo, até, de uma centena - de milhares, esses comandados se lançavam nessa jornada incerta, atraídos pela contrapartida (canto da sereia!?) apresentada pelos senhores do reino. Não é demais lembrar que, para condicionar os que se aventuravam nessa empreitada, eram estruturados vários centros de preparação, os quais cobravam – e muito caro! – para ensinar os meandros e notas de rodapé que poderiam ser cobrados nas provas das competições (que também eram precedidas de pagamento pelos competidores!). Aí começava a seleção, e quem podia pagar curtia a #parti na frente. (Salto no tempo). Com todo respeito à decepção e prejuízo (psicológico e financeiro) da maioria esmagadora dos competidores, vou prosseguir a história com os ditos aprovados. Com eles, os senhores do reino passavam a ter ao seu dispor a nata de comandados vencedores nas competições. Estes, por sua vez, ainda inebriados com suas performances, deliravam, na expectativa da vida prometida. Por isso mesmo nem se importavam em aumentar – só mais um pouco – o custo do seu ingresso na estrutura interna do reino. Afinal, vitórias tinham de ser comemoradas! Parecia justo! Concluindo ser uma atitude lógica, a partir do seu chamamento, os mais novos comandados começavam a planejar suas vidas, sem receio do porvir. O que eles desconheciam é que as regras das competições editadas pelos senhores do reino só valiam até aquele momento. E assim que os novos comandados tomavam posse e entravam em exercício a serviço do reino, ouvia-se um estrondo vindo de suas retaguardas: Cabrum! Eles haviam caído no laço! Daí em diante passavam a ser tratados por servidores! A partir de então os senhores do reino passavam a exigir dos servidores que executassem atividades cada vez mais complexas e em maior número do que rezavam os termos da competição. A contrapartida, representada por um arbusto de metal, começava a ser atacada pela inflacionis monstrus, um agente nocivo que corroía suas folhas e enferrujava seu tronco, fazendo com que o arbusto estagnasse e começasse a perder vida. Quase me esqueço de dizer que, num círculo mais próximo, os senhores do reino mantinham e adubavam seus próprios arbustos, além dos arbustos de um grande número de subordinatum cumpatris – um tipo diferente de servidores que, não só não disputavam as competições, como entravam e saíam do reino ao gosto dos senhores. Havia dezenas de milhares deles no reino do laço, vindos da terra da lassidão. A única competência de que dispunham era a de terem um QI elevado. De quanto? Nunca fora revelado. Quanto aos servidores aprovados, iam cumprindo sua parte na superestrutura do reino, enquanto assistiam a ferrugem da inflacionis monstrus corroer seus arbustos. Para não matá-los de inanição (e ter de adquirir novos servidores), de tempos em tempos os senhores do reino liberavam pequenas porções de anticorrosivo. Essas porções não cobriam todo o arbusto. Davam conta de lubrificar uma parte dele, e proporcionar a sensação de que o arbusto iria reagir e frutificar. Esperança vã. Quando os servidores se juntavam para solicitar aos senhores do reino um pouco mais de anticorrosivo (pois, estando há quase uma década sem poder lubrificar seus arbustos, assistiam à sua degradação lenta e progressiva pela ação da inflacionis monstrus), ouviam desses senhores uma distorcida mensagem (ampliada pelos sistemas de comunicação do reino, que não estavam a serviço do reino... só que não...), no sentido de que eles, os servidores, eram uns insubordinados; ingratos; que pediam doses cavalares de anticorrosivos em detrimento de todo o reino; que o seu pleito era imoral, injusto, antissocial. Acho que os senhores só não diziam que os servidores/insubordinados iriam para o inferno porque o reino era laico... E assim, barganhando para manter seus arbustos com doses mínimas de anticorrosivos, os servidores - quase excomungados - continuavam tentando convencer os senhores, e o resto do reino, de que o que queriam era, tão somente, receber, em contrapartida ao seu trabalho, o que lhes fora prometido, selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado... como na música de Raul¹. O tempo passou e, até hoje, não se sabe como ficou a situação dos comandados especializados/servidores insubordinados, ingratos/quase excomungados. Até quem os deveria defender pulou do barco, sem perceber que a distância até a praia era grande. Teve quem mudasse o discurso, jurando que sua defesa anterior não passara de uma pegadinha do malandro - como era praxe no meio apocalíptico. Consta que a vida seguiu no reino do laço - que ficava na terra da lassidão – onde os senhores do reino viviam ouvindo Pseudo Blues². Porque, para eles o certo é incerto, [e] o incerto é uma estrada reta...². ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ¹ Raul Seixas – Carimbador Maluco ² Marina Lima – Pseudo Blues

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